quinta-feira, 17 de junho de 2010

EU PRECISO DO SEU BEIJO. AGORA

Acordou completamente abismado com sua capacidade de virar uma casa em poucos dias. Estava tudo fora dos eixos. Nada condiz. Até aquilo que estava, aparentemente, no lugar certo, sequer se apresentava como tal. A bagunça que envolvia todo o ambiente não permitia o aparecimento do que estava em ordem. Se é que havia alguma coisa além da pura desordem.

Apenas aquela espécie de altar destoava da passagem do furacão pelo apartamento. Tão bem disposto. Milimetricamente planejado. Parecia mais uma instalação. Arte!

Prostrou-se frente a frente com aqueles objetos. Sentiu o perfume que vinha deles. Notou que aquele cheiro não vinha apenas daquele amontoado de coisas. Saía de todas as paredes, de todas as cortinas, de todos os talheres, de todos os lençóis... Por fim, cheirou a si próprio. Loucamente. Aspirou cada um de seus poros. Tragou todo o cheiro dela - que ainda insistia em ficar pregado em seu corpo. O cheiro dela. Ela.

Levantou-se, rastejou pelo chão, rodou pelas paredes... Resolveu telefonar mais uma vez. Talvez ela o atendesse agora. Certamente ela o atenderia, ouviria o que ele tinha a dizer e voltaria para casa. Como desejava vê-la entrar por aquela porta. Como a queria.

Silêncio, a ligação está em curso!...

É, certamente, a caixa de mensagens não se importaria se ele deixasse mais um, dois ou três pedidos de desculpa... Não custava tentar.

O barulho do aparelho encostando no gancho o despertou para a verdade. Atinou para a quantidade vã de medidas absurdas e desesperadas que tomara nas últimas 24h. Era um imbecil. Um dominado. Até quando ficaria nessa?

Estraçalhou a pilha de objetos dela. Todo aquele altar inútil. Tudo pelos ares.
- Acaba-se aqui! Fiz o que pude. Já me humilhei por demais. Chega! Fui idiota, apartir de agora: não serei mais. Tchau. Adeus.
Fumou uns três cigarros. Pulverizou todo o apartamento de fumaça. A cada sopro, exorcizava uma grande parte dela que estava, ainda, presa consigo. Entrou no chuveiro e deixou que a água arrastasse ralo abaixo todas as marcas dela que ainda restavam.

Alma nova. Nasceu de novo.

Vestiu a primeira camisa que estava à vista, atravessou o corredor triunfante.

Chegou à porta e lembrou-se das chaves. Onde estariam elas? Revirou a bagunça da sala, nada. Passou o olho pela varanda, nada. Cozinha, nada. Bolsos, nada.

Adentrou o quarto. Aquele que um dia fora dos dois. Não sentiu nada. Apenas procurava por todo lado as chaves daquela prisão. Sentou-se na cama e procurou lembrar de onde as teria deixado.

Resolveu olhar nos móveis... Nada. {Re}encontou fotografias, porém não sentiu sequer a mínima saudade ou nostalgia. Eram lixo. Trancou-as de volta na caixa e enfiou gaveta adentro.

Impaciente, vagou pela casa. Olhando para todos os lados... Nada.

Novamente, correu para o quarto. Sentiu uma fisgada no solado do pé. Alguma coisa o feriu. Encostou na parede e puxou aquilo. Bastante sangue. Examinou por alguns minutos...

Soube muito bem do que se tratava. Um brinco dela que estivera perdido por meses. Procuraram tanto e nunca chegaram a encontrar. Suspeitaram até de furto. Era um brinco especial. Ela o ganhara durante uma viagem que fizeram juntos...

De repente, como onda gigantesca que quebra sobre os marítimos, foi atingido mortalmente pelo remorso. Afinal, a quem estava tentando enganar? Ele a queria mais e mais, não adiantava negar. A saudade se transformara em outros bichos. Animais que o devoravam a cada instante. Consumia-se de dentro pra fora, de fora pra dentro. Sentiu como se a tivesse traído durante aqueles minutos de frieza. Não se perdoaria jamais. Traíra o sentimento que sentia por ela.

Felizmente, o brinco ultrapassara aquela casca hipócrita que acabara de criar.

Agarrou, novamente, as fotografias. Abraçou e beijou cada uma delas. Retomou a construção do altar. Espalhou as fotos por todos os lados. Venerava aquela imagem - aquela deusa - mais e mais.

Sentou-se ao lado do amontoado de coisas dela. Quando ela voltasse, talvez as quisesse de volta. Era melhor que ele zelasse por cada objeto...

Mas como ela iria voltar? Assim, sem convite? Não, não. De forma alguma! Sentiu o peso da obrigação de convidá-la à casa. Agarrou o telefone, rediscou cada número com louvor.

Um sorriso escancarado de ponta a outra.

"Silêncio! Está chamando"...



* * *

Sugestão: ouça Adriana Calcanhotto, mais precisamente, Canção de Novela . Música essa que, além de possuir viciante beleza, inspirou toda a história e forneceu parte de si para o título.

Obrigado.

Murilo Franco

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