sábado, 5 de junho de 2010

ÁGUA VIVA

Lavignia ergueu-se e prendeu os cabelos molhados no alto da cabeça. Estava nua porém se sentia vestida pela nuvem de vapor que a rodeava. Caminhou em direção à porta completamente alheia ao mundo. No mesmo instante em que apoiou uma das mãos na porta e que a outra encostou no metal gélido da maçaneta ocorreu-lhe uma leva de pensamentos estranhos. Não eram apenas pensamentos. Eram mais do que sensações.

Passou a imaginar-se por dentro da pele. Como que pelo avesso. Sentia o sangue agitar-se em correnteza pelas veias; sentia o esticar da artéria mais fina mediante cada pulsação; sentia o imenso vácuo dentre a coletividade apertada das células mais próximas; sentia o arrepiar de cada um de seus pêlos; sentia o percurso completo de cada inspiração; sentia o expelir de cada partícula quente, ínfimas constituições do que seria uma transpiração; sentia cada contração muscular, cada arranhar produzido por um piscar de olhos; sentia cada transmissão de informações de seus quantos bilhões de neurônios; sentia tudo.

Procurando voltar ao normal, arrastou-se pela parede e voltou à banheira. A água, estática, ainda exalava fumaça. Mergulhou-se aos poucos. Sentia o endurecer dos braços, o esticar das pernas e a petrificação de cada dedo. Felizmente, a calma de antes foi se abatendo. Antes de optar por fechar os olhos pôde ver seus longos cabelos - antes presos - se espalhando pela superfície ondulada da água, como uma teia, uma cortina.

***

Recostada na janela, disputando o espaço da mesa de canto com copos vazios, Elis fixara-se no escorrer da água da chuva no vidro. Mesmo que a tempestade e a neblina a deixassem enxergar as pessoas, os carros e a rua, ela não o faria. Estava ocupada demais para isso. Concentrava-se em cada gota. Sentia-se copiada, plagiada. Por outro lado, observava seu reflexo e admirava a união de suas lágrimas com a chuva. Na ocasião de alguém puder vê-la, certamente não se saberia quem era lágrima e quem era chuva.

Perdera as contas de quantos litros de gim-tônica consumira, talvez nem fosse capaz de pagar a conta. Sabe-se lá se saíra com algum dinheiro na hora em que correu de casa... Por mais que vidrada nas gotas, não pensava em mais nada, sequer se sentia viva. Foi imediatamente desligada da inércia em que estava quando um casal - que buscava refúgio do pé d'água - se encostou na janela.

Procurou levantar-se várias vezes, porém, estava ela toda alterada. Sentia-se alta. Longe de si. Mas essa sensação não era de hoje - tampouco era fruto, unicamente, do álcool. Há dias não morava mais em si. Por mais que sentisse a boca em chamas, juntou o resto de cada um dos copos da mesa num só e virou goela abaixo. Enquanto enfiava as mãos nos bolsos em busca de dinheiro, avançou pelo corredor de mesas esbarrando em tudo o quanto pôde. Largou tudo o que encontrara em cima do balcão e, lançou-se porta afora. Foi engolida e fuzilada pela tempestade quase que glacial.

***

Por baixo do manto de água, Lavignia chegara mesmo a pensar que não precisava mais respirar. Cogitou a hipótese de que estivesse, inclusive, morta. A idéia de que, se realmente estivesse, seria ela uma suicida, a trouxe de volta ao mundo. Ergueu a cabeça o mínimo para conseguir puxar o ar. Abriu os olhos e se deu conta de que a água esfriara. Quanto tempo teria ela passado alí? Certamente, anos... Não queria levantar. O vapor havia se dissipado. Permaneceu, trêmula, na banheira. Precisava {re}alinhar os pensamentos. Enquanto isso, submergiu novamente e tornou a fechar os olhos.

***

Toda a roupa se tornara um peso. Algum vestígio de consciência a segurara quando sentiu vontade de seguir nua. Ainda que não bastasse a chuva e o mundo aos giros, Elis encontrou-se completamente perdida até que, milagrosamente, se desse conta de que estava em frente ao portão do prédio. Enfim, em casa...

Mesmo com auxílio das mãos, subiu cambaleante a escadaria que parecia interminável e cada vez mais apertada. Errou inúmeras vezes o andar do apartamento, foram horas de um sobe-desce sem fim. Chegando na numeração correta, pensou nos resultados de se se jogar escadaria abaixo. O resto da consciência foi usada para tirá-la de perto dos degraus. No extraordinário raciocínio de unir a fechadura à chave correspondente, sabe-se lá quem a ajudou.

Encostou o rosto na porta e a empurrou com o peso do corpo.

***

Praticamente recuperada de tudo o que ocorrera, L ligou o chuveiro e recomeçou outro banho. A banheira se tornara cheia de água quente novamente. O barulho da água não a deixou ouvir que havia movimentação além do banheiro. Havia alguém derrubando coisas, chutando estilhaços de vidro...

Submergiu novamente.

***

Tudo estava do jeito em que havia sido deixado. A bagunça que promovera durante a briga estava intacta. Cada fragmento de vidro. Com as luzes apagadas, o que iluminava o aposento eram os raios da tempestade que, além de fazerem vibrar e uivar os vidros, faziam todo o corpo de E. sufocar, novamente, de ira. Em um momento de aparente silêncio pôde ouvir ruídos vindos do banheiro. Avançou tão certa de seu rumo que colocou-se em cheque se estivera MESMO alcoolizada.

***

O ar tornara-se preso aos pulmões. Já estava bem. Descobrira que esse exercício a acalmava. Prosseguiu com a prática tão concentrada que sequer pôde perceber a oscilação da maçaneta.

***

Não tinha dúvida do que tinha de ser feito. Girou o trinco com tamanha agilidade que sequer sentiu o que estava fazendo. Adentrou tão furiosa ao banheiro que chegou a patinar sobre a cerâmica lisa. Porém, já estava tão sóbria e dona de si que não hesitou em projetar as duas mãos para dentro da água.

***

Tomada por um pânico absurdo, L., involuntariamente, debatia-se em desespero. Lutava com os braços para desencravar aquelas mãos de seu pescoço. A agitação da massa de água embaralhava sua visão de tal forma que seria impossível reconhecer visualmente quem estava lá. Se dependesse de visualizações para descobrir aquela pessoa, morreria sem saber quem a matou. Porém, mesmo sem enxergá-la, soube muito bem de quem se tratava. Xingou-a aos gritos. A cada tentativa de explosão vocal, sentia oceanos a passar por sua garganta. Gritava. Urrava.

***

Manteve-se firme. Deixara para cogitar a desistência em futuro momento de remorso. Assolava aquela cabeça ao fundo da banheira como se não houvesse saída. Como se fosse questão ligada à sobrevivência. Sabia que se a libertasse, quem morreria seria ela própria. Sabia também que mesmo que toda a água da banheira extravasasse, esta nunca se tornaria vazia porque suas incessantes lágrimas repunham em dobro a quantidade perdida. Tratava-se de vida ou morte. Morte dupla, diga-se se passagem. Mesmo que saísse viva disto, a maré das circunstâncias desse passado a tornariam eterna morta-viva.

***

Seus gritos eram em dobro, seu desespero também era dobrado. Sentia que aquilo que carregava consigo, mesmo sendo tão pequeno, também desesperava-se dentro de seu corpo. Seria um assassinato duplo.
Elis desgraçada! Maldito dia em que cruzamos nossos caminhos!

A banheira escorregadia não servia de apoio. Pelo contrário, parecia uma cúmplice de sua morte. Sempre escapando aos dedos.

As palpitações se tornaram tão aceleradas que passavam umas por cima das outras. Começou a sentir fisgadas. Não tinha mais força para debater-se voluntariamente. Agora, era seu próprio corpo que o fazia sem coordenação alguma. Sentia o enlouquecer dos pulmões. Uma dor de cabeça intensa. Seu organismo gritava em desespero silencioso.

Lembranças se revolviam como pássaros em sua mente. Petrificou-se. A cortina dos longos cabelos, novamente, encarregou-se por escurecer tudo.

***

Todo o barulho do ambiente vazou por entre as frestas e desceu pelos ralos. Apenas haviam os ruídos da água, que buscava a tranquilidade, vagando em ondas pequenas de uma borda a outra.

Estamos ambas submersas. Ela - no fel da minha ira e justiça; eu - na água das nossas mais lindas lembranças conjuntas. Enfim, estamos a sós. Sem interferências de terceiros, quintos, vigésimos... Eu bem sei, o que estragou nossa vida foram os outros. Mas qual seria a força dos outros se você pudesse suportar? Foi você, sua vadia fraca. A culpa toda é, unicamente, sua! Você matou a si mesma. Suicida! Traidora! Mas agora já pagaste pelo que me roubou. Você se roubou de mim. Eras minha! Só minha! Enganou-se redondamente quando cogitou a hipótese de me apunhalar tal como o fez e sair impune. Eu não sou dessas. Não sou do seu tipo. Mas você, mesmo não sendo do meu, agora é minha de corpo inteiro.

Empenhou-se em tirar aquele corpo do fundo da água. Cuidadosamente. Linda como sempre fora, agora é que estava deslumbrante. Uma boneca de vidro. Toda a cena remetia a uma criança com seu brinquedo. Brincavam ambas. Sentou-a na banheira e passou, ternamente, a penteá-la com as mãos. A boneca, toda molhada, dormia profundamente. Sempre paradinha, olhinhos fechados. Muda.

Resolveu entrar na banheira e dividir o espaço com seu objeto. Apertadas no pouco espaço, Elis achou conveniente começarem uma conversa, para evitar o provável constrangimento. Falaram a valer. Descobriram afinidade nos primeiros minutos de conversa! Como é ótimo estar com quem se gosta... A boneca chamava-se Lavignia - lindíssimo nome! Começaram a trocar confidências e Lálá desatou num choro.

- O que houve, meu bem?
- Não, esqueça. Não é nada de importante...
- Mas eu vejo que há alguma coisa! Vamos menina, confie em mim! Somos amigas, não?
- É, nós somos... Er, obrigada... É que eu me sinto tão envergonhada...
- Ande logo com isso! Não seja tola! Confie em mim! Eu preciso saber do que se trata para ajudá-la! Eu estou aqui para isso!
- ...você é um amor. Eu não mereço toda essa atenção.
- Vamos, diga!...
- Jura que não conta prá ninguém?
- Eu não preciso jurar nada... Quantas vezes eu preciso implorar sua confiança?
- Mil perdões, eu não sei o que digo... Eu conheci uma pessoa e... Gostei demais dela e... Nós nos amamos e... A verdade é que eu estou grávida...
- Mas que notícia maravilhosa! Sinta-se alegre por isso, meu bem! Você já pensou no nome da criança?