quarta-feira, 30 de junho de 2010

"Eu vou te contar que você não me conhece. E eu tenho que gritar isso porque você está surdo e não me ouve. A sedução me escraviza a você. Ao fim de tudo você permanece comigo - mas, preso ao que eu criei e não a mim.

E quanto mais eu falo sobre a verdade inteira, um abismo maior nos separa. Você não tem um nome; eu tenho. Você é um rosto na multidão e eu sou o centro das atenções. Mas, a mentira da aparência do que eu sou é a mentira da aparência do que você é. Porque eu não sou o meu nome; e você não é ninguém.

O jogo perigoso que eu pratico aqui busca chegar ao limite possível da aproximação, através da aceitação da distância e do reconhecimento dela.

Entre eu e você existe a notícia - que nos separa. Eu quero que você me veja nu. Eu me dispo da notícia. E a minha nudez - parada, te denuncia e te espelha.

Eu me delato; tu me relatas.

Eu nos acuso e confesso por nós. Assim, me livro das palavras com as quais você me veste."

Fauzi Arap

FRANCO ATIRADOR

- Nice Shot!

Eu me pergunto sempre se é só isso. Será, mesmo?
Se for, acho muito.
Ah, acho bastante, também.
O muito é muito pouco e eu quero que vá embora.
já o bastante, fica
- fica com pouco, também.

Essa minha cabeça é minha cruz.
Principalmente o miolo.
Uma cruz arredondada. Circunferencialmente e portencialmente mortífera.
Enquanto minha cruz olha para dentro, por fora estou bem.
Quando minha cruz estica o olho pro exterior - não cabendo em si,
é quando, por fora estou assim:
Surtado.

Por mais que "a ordem das árvores não altere os passarinhos",
sinto-me bastante confuso.
Eu e essa minha mania feia de antepor e transpassar idéias.
Eu, como sempre, atrapalho-me.
Eu bem que tento deixar a desordem só aqui dentro,
mas tenho sérios problemas.
Problemas em manter a bagunça presa por muito tempo,
ela lota-me por dentro
e circula-me por fora.

O que fazer?
... cura, eu já sei que não há.

Eu conviveria melhor comigo se nada no mundo precisasse de explicação.
Eu surto - mas não tem motivo.
Endoidecer simplesmente por endoidecer não vale.
- pelo menos não pra mim,
nem pro mundo.
E, justamente nessa falta de motivos,
eu procuro explicações.
Encontro muitas,
mas as muitas são poucas - até porque de nada valem.

Cerco-me de mantras.
Repito mentalmente o que me acalme.
Não sou de guerra,
não sou de paz.
Eu, simplesmente,
não sou.
Não sou,
e nem estou.

Dentro dessas veias circula bastante pretensão.
Eu finjo que a controlo para manter-me menos insuportável.
Tudo em vão,
mas a sabedoria popular reza que tentativas são válidas.
Se assim o for,
sinto-me até quase que recompensado,
ainda que incapaz de conter-me.

Eu não caibo em mim,
e espero que você "saque minha esquizofrenia".
Até porque em matéria de compreensão alheia, nunca há excesso.

Sigo nesse falso tiroteio de idéias,
idéias que nada têm de objetividade.
E por mais que eu as queira francas,
jamais deixarão o patamar do que é confuso.
Mas ainda sim, têm lá sua fatia de honestidade.
Confusas talvez porque sejam idéias minhas
- ou idéias que eu ache que sejam minhas,
ou ainda idéias surrupiadas do alheio.
Mas o que importa,
é que são idéias-balas.
Que saem da minha boca e de meus olhos
e que vão em sua direção.

- ...oh, yeah. A real nice shot.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A TRAPEZISTA DO CIRCO

"Era uma vez, mas eu me lembro como se fosse agora, eu queria ser trapezista. Minha paixão era o trapézio, me atirar lá do alto na certeza de que alguém segurava minhas mãos, não me deixando cair. Era lindo mas eu morria de medo. Tinha medo de tudo quase, cinema, parque de diversão, de circo, ciganos, aquela gente encantada que chegava e seguia. Era disso que eu tinha medo, do que não ficava para sempre. Era outra vez, outro circo, ciganos e patinadores. O circo chegou à cidade, era uma tarde de sonhos e eu corri até lá. Os artistas, eles se preparavam nos bastidores para começar o espetáculo, e eu entrei no meio deles e falei que eu queria ser trapezista. Veio falar comigo uma moça do circo que era a domadora, era uma moça bonita, forte, era uma moçona mesmo. Ela me olhou, riu um pouco, disse que era muito difícil, mas que nada era impossível. Depois veio o palhaço Poli, veio o Topz, veio o Diverlangue que parecia um príncipe, o dono do circo, as crianças, o público. De repente apareceu uma luz lá no alto e todo mundo ficou olhando. A lona do circo tinha sumido e o que eu via era a estrela Dalva no céu aberto. Quando eu cansei de ficar olhando para o alto e fui olhar para as pessoas, só aí, eu vi que eu estava sozinha."

Antônio Bivar

quinta-feira, 24 de junho de 2010

SONÂMBULO

Numa espécie de limbo
O sonâmbulo anda feito pêndulo
Ora pende dormindo, ora pende contra o tempo
E faz deste inimigo, atrasado, correndo
Justifica um vazio interno, imenso
Fugas mentais ocupam os pensamentos
E se torna incapaz de ocupar a si mesmo
TVs, zines, jornais, químicas num intento
Bloquear os canais
Domesticar seus anseios

Que é bom desconfiar dos "bons" elementos

Feito histórias de Moebius vão tirar sua visão
E te dar olhos passivos adequados ao padrão
Céu & Bruno Buarque & Sérgio Machado

LUZ NEGRA

Não é que eu goste de dormir com as luzes acesas, pra ser sincero, nem gostar de muita claridade, eu gosto. Mas, para mim, a total escuridão é mortal.

Apenas não suporto ser incapaz ver o que há ao meu redor. Aquele tipo de escuridão em que não há diferença entre olhos fechados e olhos abertos. Esse tipo de falta de luz, onde tudo parece ausente, me amedronta. Sinto-me como perdido, imerso em total desconhecimento. Sem farol, sem cais, sem guia, sem barco, sem mim. Sem nada.

Agrada-me a penumbra. Gosto de ver as sombras dentro do quarto. É como se elas fossem restos daquela antiga escuridão total. Restos vencidos pela pouca luz, mas ainda sim, vencidos.

Feixes de luz também me agradam. Atravessam a escuridão de forma magnífica. Raios de luz que contornam as frestas da porta. Esses sim são ótimos soníferos. Mirar o olhar por alguns minutos é a certeza da chegada breve do sono.

Também me agrada aquela tonalidade luminescente coada por cortinas. Nem claro, nem escuro. Ambientes mornos e preguiçosos... Gosto bastante.

Minto quando digo que não gosto da claridade, na verdade, aprecio-a muito - mais do que a falta dela. Mas, por enquanto, não acenda as luzes.

Não sei o que está acontecendo... Por hora, deixe-me aqui - no escuro. Perdido. Em alguma hora, ou em algum dia, ou sabe-se lá quando, eu vou me acostumar ao lugar - e, adaptado, poderei enxergar o que realmente existe à minha volta. Ou então quem sabe eu durma de uma vez - e me integre à escuridão de outra forma, de um jeito mais completo.

Deixe-me aqui, respirando a insônia, sentindo a ausência do claro e sonhando com a presença da luz - que é o que eu, de melhor, sei fazer.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

MAGNETISMO

Desde que se entendiam por gente, conheciam um ao outro. Perdiam-se na linha do tempo que definia o início da amizade. Nessa perdição, desentendiam-se sempre que tocavam no assunto. Ele a considerava amiga desde os primórdios; ela o tinha por amigo desde antes - bem antes - do período que por ele era entendido como "primórdios".

Levavam a vida assim, nessa eterna dependência mútua. Conviviam o mais próximo possível e dessa prazerosa interação começaram a surgir as canções. Cada qual com seu violão rasgando madrugadas afora.

Como se não bastasse, estava selada mais uma ligação entre os dois: a música.

O reconhecimento não tardou. Começaram cantando - sempre juntos - para amigos, e esses amigos gostavam tanto do que ouviam que por sua vez propagavam para mais amigos que espalhavam para outros e outros a outros.

Vieram contratos, entrevistas, maquinários, muitas canções, estúdios, participações, viagens, consertos...

Certa vez, quando comemorando o sucesso de mais uma apresentação, por entre as roupas de mais um camarim, cara-a-cara - como era de costume, não puderam resistir a um beijo. Ardente como que esperado há anos por ambos os lados.

Afastaram-se rapidamente. "Caídos em si", cada qual se encostou à parede mais oposta. Mal podiam crer que teriam posto fim a uma conexão tão profunda. Estragaram a amizade, a carreira, tudo. Culpavam a si mesmos e, ao mesmo tempo, recriminavam ao outro - que não foi capaz de manter-se nos eixos e evitar tamanha desgraça. Precisavam pensar em alguma solução, algum intermédio, algum remédio.

Antes, porém, como que atraídos como ímãs pela boca e corpo do outro, despregaram-se dos pólos opostos e uniram-se novamente. Afinal, tudo já estava consumado, mesmo. Agora mais do que nunca, pensariam na finalização do problema juntos.

... com uma boca na outra.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

MESTRE

Ainda que eu queira encontrar e justificar argumentos capazes de segurar-te nesse mundo, bem sei que nunca fostes dele. Tenha a mim como fiel discípulo.

Adeus, Saramago.
A você, minha reverência e luto eterno.
Murilo Franco

quinta-feira, 17 de junho de 2010

EU PRECISO DO SEU BEIJO. AGORA

Acordou completamente abismado com sua capacidade de virar uma casa em poucos dias. Estava tudo fora dos eixos. Nada condiz. Até aquilo que estava, aparentemente, no lugar certo, sequer se apresentava como tal. A bagunça que envolvia todo o ambiente não permitia o aparecimento do que estava em ordem. Se é que havia alguma coisa além da pura desordem.

Apenas aquela espécie de altar destoava da passagem do furacão pelo apartamento. Tão bem disposto. Milimetricamente planejado. Parecia mais uma instalação. Arte!

Prostrou-se frente a frente com aqueles objetos. Sentiu o perfume que vinha deles. Notou que aquele cheiro não vinha apenas daquele amontoado de coisas. Saía de todas as paredes, de todas as cortinas, de todos os talheres, de todos os lençóis... Por fim, cheirou a si próprio. Loucamente. Aspirou cada um de seus poros. Tragou todo o cheiro dela - que ainda insistia em ficar pregado em seu corpo. O cheiro dela. Ela.

Levantou-se, rastejou pelo chão, rodou pelas paredes... Resolveu telefonar mais uma vez. Talvez ela o atendesse agora. Certamente ela o atenderia, ouviria o que ele tinha a dizer e voltaria para casa. Como desejava vê-la entrar por aquela porta. Como a queria.

Silêncio, a ligação está em curso!...

É, certamente, a caixa de mensagens não se importaria se ele deixasse mais um, dois ou três pedidos de desculpa... Não custava tentar.

O barulho do aparelho encostando no gancho o despertou para a verdade. Atinou para a quantidade vã de medidas absurdas e desesperadas que tomara nas últimas 24h. Era um imbecil. Um dominado. Até quando ficaria nessa?

Estraçalhou a pilha de objetos dela. Todo aquele altar inútil. Tudo pelos ares.
- Acaba-se aqui! Fiz o que pude. Já me humilhei por demais. Chega! Fui idiota, apartir de agora: não serei mais. Tchau. Adeus.
Fumou uns três cigarros. Pulverizou todo o apartamento de fumaça. A cada sopro, exorcizava uma grande parte dela que estava, ainda, presa consigo. Entrou no chuveiro e deixou que a água arrastasse ralo abaixo todas as marcas dela que ainda restavam.

Alma nova. Nasceu de novo.

Vestiu a primeira camisa que estava à vista, atravessou o corredor triunfante.

Chegou à porta e lembrou-se das chaves. Onde estariam elas? Revirou a bagunça da sala, nada. Passou o olho pela varanda, nada. Cozinha, nada. Bolsos, nada.

Adentrou o quarto. Aquele que um dia fora dos dois. Não sentiu nada. Apenas procurava por todo lado as chaves daquela prisão. Sentou-se na cama e procurou lembrar de onde as teria deixado.

Resolveu olhar nos móveis... Nada. {Re}encontou fotografias, porém não sentiu sequer a mínima saudade ou nostalgia. Eram lixo. Trancou-as de volta na caixa e enfiou gaveta adentro.

Impaciente, vagou pela casa. Olhando para todos os lados... Nada.

Novamente, correu para o quarto. Sentiu uma fisgada no solado do pé. Alguma coisa o feriu. Encostou na parede e puxou aquilo. Bastante sangue. Examinou por alguns minutos...

Soube muito bem do que se tratava. Um brinco dela que estivera perdido por meses. Procuraram tanto e nunca chegaram a encontrar. Suspeitaram até de furto. Era um brinco especial. Ela o ganhara durante uma viagem que fizeram juntos...

De repente, como onda gigantesca que quebra sobre os marítimos, foi atingido mortalmente pelo remorso. Afinal, a quem estava tentando enganar? Ele a queria mais e mais, não adiantava negar. A saudade se transformara em outros bichos. Animais que o devoravam a cada instante. Consumia-se de dentro pra fora, de fora pra dentro. Sentiu como se a tivesse traído durante aqueles minutos de frieza. Não se perdoaria jamais. Traíra o sentimento que sentia por ela.

Felizmente, o brinco ultrapassara aquela casca hipócrita que acabara de criar.

Agarrou, novamente, as fotografias. Abraçou e beijou cada uma delas. Retomou a construção do altar. Espalhou as fotos por todos os lados. Venerava aquela imagem - aquela deusa - mais e mais.

Sentou-se ao lado do amontoado de coisas dela. Quando ela voltasse, talvez as quisesse de volta. Era melhor que ele zelasse por cada objeto...

Mas como ela iria voltar? Assim, sem convite? Não, não. De forma alguma! Sentiu o peso da obrigação de convidá-la à casa. Agarrou o telefone, rediscou cada número com louvor.

Um sorriso escancarado de ponta a outra.

"Silêncio! Está chamando"...



* * *

Sugestão: ouça Adriana Calcanhotto, mais precisamente, Canção de Novela . Música essa que, além de possuir viciante beleza, inspirou toda a história e forneceu parte de si para o título.

Obrigado.

Murilo Franco

quarta-feira, 16 de junho de 2010

FREIO

EU QUASE FUI FELIZ

Mesmo sabendo que não é loucura, prefiro seguir acreditando que se trata de plena escuridão de lucidez. É como se eu necessitasse, se eu tivesse sede por impor falsos limites e falsas fronteiras a fim de barrar aquilo que tenho ciência de que é por demais extravasante.

Eu bem conheço a dimensão dessa vazão. Preciso fazer de conta que sou capaz de prendê-la em minhas mãos, por mais que a sinta ir embora por entre meus dedos. Meus esforços são todos em vão. Eu finjo que a seguro, mas ela não finge que se prende. Às vezes, durante o percurso de fuga, tudo isso que me escapa arrasta também a mim pelo caminho. Sim, porque eu estou imerso nesse todo. Isso que foge de mim sou eu - ou pelo menos eu ache que seja.

Nunca é hora. Nunca é tempo bom. Tudo são planos.

O que me resta é planejar quantos mais forem necessários para me auto-iludir.

Quisera eu uma constante. E quanto mais eu a quero, mais oscilante me torno. Sinto-me encolher e inchar em determinados momentos. Não sou maré. Seria por demais prepotente se me apropriasse desse termo.

Dentro desse meu desgoverno, há dias em que me sinto tão limitado que sequer me enxergo como vivo. Será mesmo que tenho vida? Incrível seria se isso que sou fosse apenas uma projeção. Um sonho meu. Meu eu verdadeiro - aquele que eu sempre sonhei para ser a mim - está dormindo. Dorme tanto que sonha com um rascunho mal feito de si próprio. Dorme tanto que sonha comigo.

Em outras circunstâncias, gosto de me representar. Esse papel que me foi dado tem lá seus momentos de glória. O personagem é insuportável, porém, dentro dessa "insuportabilidade" consigo vivenciar determinadas excentricidades que me conferem ápices de alegria. Bons momentos...

É perceptível o meu apreço por, sempre que é possível, me ausentar de mim. É como se eu não quisesse assumir minhas responsabilidades - minhas rédeas. Realmente existe esse confronto em mim. Um lado quer impor limites, outro quer apenas deixar tudo de lado - aquela postura de quando nada vale a pena.

Sabe-se lá quem ganha a guerra.

Esse meu mundo se esvai em batalhas e, no entanto, eu procuro disfarçar arestas mal aparadas. Um pacificador de ânimos. Diplomata de mim mesmo. Faço de um tudo para não aparentar frustração - por mais que ela seja por demais visível. O que importa é que eu não a quero. Simplesmente não a aceito porque ela não ter razão de ser. Não há motivos para que ela exista. Não existe solo fértil, tampouco houve dispersão de sementes. Logo, sua presença não é bem vinda. "Xô!"

Tenho mania de sentir que estou perdendo tempo. São nesses momentos que me sinto incrível. Tão magnífico que é um crime que eu esteja me perdendo. Esvaindo-me. Mesmo que isso, em pequenas partes, de fato exista, não é de fato com tamanha intensidade. É tudo obra de mente ociosa.

Essa minha sede por coisas belas - e por descobrir o belo naquilo que nem sempre tem beleza a ofertar - é o combustível para que eu me entristeça perante minha pequenez frente à quantidade de coisas dignas de apreço e descobrimento. Há tanta informação e tantos mundos maravilhosos ao passo que eu tenho apenas essa mísera quantidade de vida para estar com tantas coisas - e ainda desperdiçar aquilo que já é insuficiente.

Cansei de ser inerte. Preciso de ação. Antes, eu sufocava por vontade de me reconhecer em mim. Hoje, eu cego, ensurdeço, enlouqueço e permaneço nessa ânsia por me conhecer. Não é possível que eu seja apenas isso que se apresenta. Não quero. Eu sei que posso ser mais - e sinto isso.

Inveja.

Tudo é por demais grandioso à minha volta. Por que não posso me unir à tamanha grandeza? Já que não posso ser grande, então, por que me foi dado tamanho castigo de ver tudo isso e não poder me incluir nesse contexto? Resta-me o recolhimento aos portões da grande festa. Olhar tudo de longe. Ansiar por pisar o palco.

...conter minhas vontades, ainda que se eu as tivesse seguido - se eu não as tivesse perdido, talvez fosse eu quem estivesse propondo o brinde.

sábado, 5 de junho de 2010

ÁGUA VIVA

Lavignia ergueu-se e prendeu os cabelos molhados no alto da cabeça. Estava nua porém se sentia vestida pela nuvem de vapor que a rodeava. Caminhou em direção à porta completamente alheia ao mundo. No mesmo instante em que apoiou uma das mãos na porta e que a outra encostou no metal gélido da maçaneta ocorreu-lhe uma leva de pensamentos estranhos. Não eram apenas pensamentos. Eram mais do que sensações.

Passou a imaginar-se por dentro da pele. Como que pelo avesso. Sentia o sangue agitar-se em correnteza pelas veias; sentia o esticar da artéria mais fina mediante cada pulsação; sentia o imenso vácuo dentre a coletividade apertada das células mais próximas; sentia o arrepiar de cada um de seus pêlos; sentia o percurso completo de cada inspiração; sentia o expelir de cada partícula quente, ínfimas constituições do que seria uma transpiração; sentia cada contração muscular, cada arranhar produzido por um piscar de olhos; sentia cada transmissão de informações de seus quantos bilhões de neurônios; sentia tudo.

Procurando voltar ao normal, arrastou-se pela parede e voltou à banheira. A água, estática, ainda exalava fumaça. Mergulhou-se aos poucos. Sentia o endurecer dos braços, o esticar das pernas e a petrificação de cada dedo. Felizmente, a calma de antes foi se abatendo. Antes de optar por fechar os olhos pôde ver seus longos cabelos - antes presos - se espalhando pela superfície ondulada da água, como uma teia, uma cortina.

***

Recostada na janela, disputando o espaço da mesa de canto com copos vazios, Elis fixara-se no escorrer da água da chuva no vidro. Mesmo que a tempestade e a neblina a deixassem enxergar as pessoas, os carros e a rua, ela não o faria. Estava ocupada demais para isso. Concentrava-se em cada gota. Sentia-se copiada, plagiada. Por outro lado, observava seu reflexo e admirava a união de suas lágrimas com a chuva. Na ocasião de alguém puder vê-la, certamente não se saberia quem era lágrima e quem era chuva.

Perdera as contas de quantos litros de gim-tônica consumira, talvez nem fosse capaz de pagar a conta. Sabe-se lá se saíra com algum dinheiro na hora em que correu de casa... Por mais que vidrada nas gotas, não pensava em mais nada, sequer se sentia viva. Foi imediatamente desligada da inércia em que estava quando um casal - que buscava refúgio do pé d'água - se encostou na janela.

Procurou levantar-se várias vezes, porém, estava ela toda alterada. Sentia-se alta. Longe de si. Mas essa sensação não era de hoje - tampouco era fruto, unicamente, do álcool. Há dias não morava mais em si. Por mais que sentisse a boca em chamas, juntou o resto de cada um dos copos da mesa num só e virou goela abaixo. Enquanto enfiava as mãos nos bolsos em busca de dinheiro, avançou pelo corredor de mesas esbarrando em tudo o quanto pôde. Largou tudo o que encontrara em cima do balcão e, lançou-se porta afora. Foi engolida e fuzilada pela tempestade quase que glacial.

***

Por baixo do manto de água, Lavignia chegara mesmo a pensar que não precisava mais respirar. Cogitou a hipótese de que estivesse, inclusive, morta. A idéia de que, se realmente estivesse, seria ela uma suicida, a trouxe de volta ao mundo. Ergueu a cabeça o mínimo para conseguir puxar o ar. Abriu os olhos e se deu conta de que a água esfriara. Quanto tempo teria ela passado alí? Certamente, anos... Não queria levantar. O vapor havia se dissipado. Permaneceu, trêmula, na banheira. Precisava {re}alinhar os pensamentos. Enquanto isso, submergiu novamente e tornou a fechar os olhos.

***

Toda a roupa se tornara um peso. Algum vestígio de consciência a segurara quando sentiu vontade de seguir nua. Ainda que não bastasse a chuva e o mundo aos giros, Elis encontrou-se completamente perdida até que, milagrosamente, se desse conta de que estava em frente ao portão do prédio. Enfim, em casa...

Mesmo com auxílio das mãos, subiu cambaleante a escadaria que parecia interminável e cada vez mais apertada. Errou inúmeras vezes o andar do apartamento, foram horas de um sobe-desce sem fim. Chegando na numeração correta, pensou nos resultados de se se jogar escadaria abaixo. O resto da consciência foi usada para tirá-la de perto dos degraus. No extraordinário raciocínio de unir a fechadura à chave correspondente, sabe-se lá quem a ajudou.

Encostou o rosto na porta e a empurrou com o peso do corpo.

***

Praticamente recuperada de tudo o que ocorrera, L ligou o chuveiro e recomeçou outro banho. A banheira se tornara cheia de água quente novamente. O barulho da água não a deixou ouvir que havia movimentação além do banheiro. Havia alguém derrubando coisas, chutando estilhaços de vidro...

Submergiu novamente.

***

Tudo estava do jeito em que havia sido deixado. A bagunça que promovera durante a briga estava intacta. Cada fragmento de vidro. Com as luzes apagadas, o que iluminava o aposento eram os raios da tempestade que, além de fazerem vibrar e uivar os vidros, faziam todo o corpo de E. sufocar, novamente, de ira. Em um momento de aparente silêncio pôde ouvir ruídos vindos do banheiro. Avançou tão certa de seu rumo que colocou-se em cheque se estivera MESMO alcoolizada.

***

O ar tornara-se preso aos pulmões. Já estava bem. Descobrira que esse exercício a acalmava. Prosseguiu com a prática tão concentrada que sequer pôde perceber a oscilação da maçaneta.

***

Não tinha dúvida do que tinha de ser feito. Girou o trinco com tamanha agilidade que sequer sentiu o que estava fazendo. Adentrou tão furiosa ao banheiro que chegou a patinar sobre a cerâmica lisa. Porém, já estava tão sóbria e dona de si que não hesitou em projetar as duas mãos para dentro da água.

***

Tomada por um pânico absurdo, L., involuntariamente, debatia-se em desespero. Lutava com os braços para desencravar aquelas mãos de seu pescoço. A agitação da massa de água embaralhava sua visão de tal forma que seria impossível reconhecer visualmente quem estava lá. Se dependesse de visualizações para descobrir aquela pessoa, morreria sem saber quem a matou. Porém, mesmo sem enxergá-la, soube muito bem de quem se tratava. Xingou-a aos gritos. A cada tentativa de explosão vocal, sentia oceanos a passar por sua garganta. Gritava. Urrava.

***

Manteve-se firme. Deixara para cogitar a desistência em futuro momento de remorso. Assolava aquela cabeça ao fundo da banheira como se não houvesse saída. Como se fosse questão ligada à sobrevivência. Sabia que se a libertasse, quem morreria seria ela própria. Sabia também que mesmo que toda a água da banheira extravasasse, esta nunca se tornaria vazia porque suas incessantes lágrimas repunham em dobro a quantidade perdida. Tratava-se de vida ou morte. Morte dupla, diga-se se passagem. Mesmo que saísse viva disto, a maré das circunstâncias desse passado a tornariam eterna morta-viva.

***

Seus gritos eram em dobro, seu desespero também era dobrado. Sentia que aquilo que carregava consigo, mesmo sendo tão pequeno, também desesperava-se dentro de seu corpo. Seria um assassinato duplo.
Elis desgraçada! Maldito dia em que cruzamos nossos caminhos!

A banheira escorregadia não servia de apoio. Pelo contrário, parecia uma cúmplice de sua morte. Sempre escapando aos dedos.

As palpitações se tornaram tão aceleradas que passavam umas por cima das outras. Começou a sentir fisgadas. Não tinha mais força para debater-se voluntariamente. Agora, era seu próprio corpo que o fazia sem coordenação alguma. Sentia o enlouquecer dos pulmões. Uma dor de cabeça intensa. Seu organismo gritava em desespero silencioso.

Lembranças se revolviam como pássaros em sua mente. Petrificou-se. A cortina dos longos cabelos, novamente, encarregou-se por escurecer tudo.

***

Todo o barulho do ambiente vazou por entre as frestas e desceu pelos ralos. Apenas haviam os ruídos da água, que buscava a tranquilidade, vagando em ondas pequenas de uma borda a outra.

Estamos ambas submersas. Ela - no fel da minha ira e justiça; eu - na água das nossas mais lindas lembranças conjuntas. Enfim, estamos a sós. Sem interferências de terceiros, quintos, vigésimos... Eu bem sei, o que estragou nossa vida foram os outros. Mas qual seria a força dos outros se você pudesse suportar? Foi você, sua vadia fraca. A culpa toda é, unicamente, sua! Você matou a si mesma. Suicida! Traidora! Mas agora já pagaste pelo que me roubou. Você se roubou de mim. Eras minha! Só minha! Enganou-se redondamente quando cogitou a hipótese de me apunhalar tal como o fez e sair impune. Eu não sou dessas. Não sou do seu tipo. Mas você, mesmo não sendo do meu, agora é minha de corpo inteiro.

Empenhou-se em tirar aquele corpo do fundo da água. Cuidadosamente. Linda como sempre fora, agora é que estava deslumbrante. Uma boneca de vidro. Toda a cena remetia a uma criança com seu brinquedo. Brincavam ambas. Sentou-a na banheira e passou, ternamente, a penteá-la com as mãos. A boneca, toda molhada, dormia profundamente. Sempre paradinha, olhinhos fechados. Muda.

Resolveu entrar na banheira e dividir o espaço com seu objeto. Apertadas no pouco espaço, Elis achou conveniente começarem uma conversa, para evitar o provável constrangimento. Falaram a valer. Descobriram afinidade nos primeiros minutos de conversa! Como é ótimo estar com quem se gosta... A boneca chamava-se Lavignia - lindíssimo nome! Começaram a trocar confidências e Lálá desatou num choro.

- O que houve, meu bem?
- Não, esqueça. Não é nada de importante...
- Mas eu vejo que há alguma coisa! Vamos menina, confie em mim! Somos amigas, não?
- É, nós somos... Er, obrigada... É que eu me sinto tão envergonhada...
- Ande logo com isso! Não seja tola! Confie em mim! Eu preciso saber do que se trata para ajudá-la! Eu estou aqui para isso!
- ...você é um amor. Eu não mereço toda essa atenção.
- Vamos, diga!...
- Jura que não conta prá ninguém?
- Eu não preciso jurar nada... Quantas vezes eu preciso implorar sua confiança?
- Mil perdões, eu não sei o que digo... Eu conheci uma pessoa e... Gostei demais dela e... Nós nos amamos e... A verdade é que eu estou grávida...
- Mas que notícia maravilhosa! Sinta-se alegre por isso, meu bem! Você já pensou no nome da criança?

quarta-feira, 2 de junho de 2010