sábado, 28 de agosto de 2010

NOME DE MOÇA

Eu estava tentando ler mais um livro quando fui interrompido por uma sequência de nomes aleatórios. A princípio, ignorar foi minha atitude. Afinal, minha leitura me confiava uma ocupação mais interessante.

Estela
Vitória
Angelina
Sol
Felícia
Raquel

Novamente, estava eu desacordado da história pela mesma voz que - incansavelmente - permanecia ao acaso citando nomes em voz alta. Mais uma vez eu maldisse a irritante proximidade de nossas casas e o inconveniente posicionamento da minha janela - justo de frente para a sala alheia. Em especial, essa noite eu senti que meus vizinhos moravam dentro da minha casa. Até a música que eles ouviam eu ouvia também. Sem falar na chuva de nomes que até agora não acabara. O que seria aquilo, meu Deus? Uma chamada oral num convento?
Anita
Gisele
Soraia
Denise
Flora
Catarina

Não teve jeito. Uma vez que nem ler eu podia mais, senti vontade de escutar minhas músicas. Baixinho, claro. Só para mim. A final de contas, eu não iria "jogar na mesma moeda". Eis que a situação incômoda estava me enlouquecendo. Agradeci por estar tentando ler, e não dormir. Porque se assim o fosse, minha ira seria maior. Eu só queria, por tudo o que houvesse de mais sagrado, parar de ouvir aquilo.

Pedrita
Elis
Ceci
Vanice
Gil
Beatrix

Vencido pelo cansaço e confiante na esperança de que em alguma hora aquele casal iria dormir, comecei a tentar entender o que realmente eles estavam fazendo. Nunca pensei que existissem tantos nomes no mundo. Conheci uns 15 ou mais que jamais ouvira na vida. É, a tortura estava se tornando um aprendizado.

Tainá
Lia
Bianca
Marina
Ana
Carol

Ocorreu-me, finalmente, o óbvio. Apenas uma pessoa tão lerda como eu teria demorado tanto para compreender a situação. Lembrei-me de que minha vizinha estava do alto de seus alguns meses de gravidez. Logo, aquela enxurrada de nomes nada mais era do que sugestão. Senti uma ponta de remorso por ter desejado que ela se calasse. Portanto, numa tentativa de compensar minha incompreensão, pousei o livro de lado e me envolvi com a escolha de um nome apropriado à criança. Eu estava me redimindo.

Lívia
Elba
Aline
Juliana
Mangna
Penélope

Jamais saberá o casal que uma pessoa tão insignificante em suas vidas (como eu) participou de um momento tão importante quanto aquele. Passei a ouvir atentamente cada opção. Descartei todos os nomes compostos por achá-los populares e horrorosos demais. Visualizei a criança na escola sendo chamada por colegas impertinentes pelos apelidos que seu nome era capar de sugerir. Resultado: risquei da lista várias outras opções.

Isabel
Ruth
Diana
Eva
Helena
Salma

Depois que eu abracei a causa, logo logo a futura mãe esgotou suas sugestões. Ainda pude ouvi-la perguntar ao seu companheiro se este tinha alguma preferência pela origem do nome da futura filha. O pai respondeu que simpatizava com a raiz latina - e eu não pude deixar de concordar com o Sr. Meu Vizinho. Pouco tempo depois, alguns nomes latinos apareceram. Meu trabalho estava concluído. Senti que um daqueles, em especial, fizera toda a diferença. Agarrei-me a ele com todas as minhas forças.

Alice

Naquela noite fui dormir pensando na minha capacidade de mergulhar de uma ficção em outra - sendo ambas completamente alheias a mim.

domingo, 22 de agosto de 2010

SACRIFÍCIOS

DOIS

Eu me distraio com qualquer besteira. E sempre desencadeio todo um conjunto de pensamentos que acabam repuxando histórias antigas. Recordações que eu mesmo não lembrava. Nada que valha a pena, mas ainda assim, é bem mais forte do que eu. A ponto de eu não poder evitar. Preciso me controlar, mesmo sabendo da minha incapacidade.

Agora, por exemplo, devo estar há horas encarando esse espelho. Pensando em mistérios, rituais e coisas sem sentido. Também estou desviando meus olhos dos olhos desse reflexo - que devia ser eu, mas não é. Essa imagem encarnou tudo aquilo que desconheço.

Estou atrasado. É incrível como eu sempre me atraso. Não estou com a menor vontade de me arrumar. Hoje é um daqueles dias em que não se deve sair de casa. Jamais deveria ter marcado esse encontro para hoje. Por que acabo sempre fazendo aquilo que não quero? Posso enumerar em lista tudo aquilo que não desejo. Mas peça-me para exemplificar o que realmente quero e o papel ficará em branco. Uma brancura tão vazia que clareia minha visão para uma coisa: não quero absolutamente nada.

Preciso correr. Estou perdendo tempo. Não posso dar voz à preguiça. Tampouco a esses pensamentos idiotas. Eu vou transformar minha vontade de faltar a esse compromisso no combustível que me fará ir de encontro a ele. Já estou quase pronto.

Ates de sair de casa, apenas mais uma olhada no espelho. Eu poderia mentir e dizer que foi apenas para checar se a roupa estava em ordem. Mas chegou a hora de ser honesto. Eu estou em frente ao espelho para me despedir. Dizer adeus a esse outro - que mesmo não sendo eu, talvez possa estar melhor do que o "eu" que vai chegar em casa em algumas horas. Porque estou partindo para um desconhecido. Pode ser que tudo corra bem, mas pode não ser, também. Vai ver, se tudo for uma merda, eu me arrependa de ter pisado fora de casa - hoje e sempre. Vai ver eu me arrependa de ter traçado o caminho escuro. Vai ver que eu conjurei minha própria sorte.

Atravessada a sala, durante os poucos segundos em que pensei que tudo daria errado porque meus pensamentos pessimistas chamariam mais negatividade, juro que cogitei a hipótese de fazer um ritual. Alguma oferta de peito aberto enquanto houvesse tempo. Um sacrifício, talvez? Felizmente, lembrei que a oferenda sou eu. E que eu é que tenho vivido esse calvário. Levar um dia após o outro, teatralizando uma "cabeça erguida", já deve ser suficiente.

Dito o tchau, eu tranco a porta com um pensamento predominante. É uma espécie de torcida que mais tarde - até que eu chegue no ponto de encontro - terá se tornado um mantra. Quando tudo acabar, e eu já estiver casa, preciso encarar aquele espelho e olhar "de cima" aquele misterioso reflexo insolente. Por favor, que tudo ocorra bem para que eu me sinta melhor do que ele!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

SACRIFÍCIOS

UM

Carrego sempre comigo uns pensamentos estranhos que me fazem crer que cada movimento meu - na verdade, a combinação deles - faz parte de um ritual. Tratam-se de "passo-a-passos" soltos sequer inventados por mim, mas que eu estou a beira de, eventualmente, realizar por equívoco. E eu tenho medo de tropeçar nesse misticismo por engano e, no fim de tudo, ver-me como autor de uma feitiçaria desconhecida por pura falta de atenção.

É por isso que eu premedito cada atitude minha: para escolher sempre a alternativa menos obscura. Àquela que não aparente fazer parte de encantamento algum. Àquela "limpa".

Não me entenda mal, conheça-me como um completo ignorante nesse ramo. Nunca mexi com nada disso, tampouco - que eu saiba - conheci alguém que o fizesse. Salvo o rebanho de personagens fantasiosos vindos dos livros e filmes - os quais, alguns, até muito meus amigos se tornaram... Mas eu sei que todos eles nasceram da ficção de mentes um tanto quanto tão imaginativas quanto a minha. É, isso, certamente, não vem ao caso.

O importante não é saber que existem mais mistérios entre o céu e a terra do que nossa vã filosofia pode supor. O crucial é saber que eles, além de muitos, estão em nosso meio. E que existe uma atração muito forte entre nossas existências. A ponto de eles - os mistérios - fazerem com que nós os façamos, e ainda criemos mais. Eu os vejo. Eles estão aqui - conosco. Ou talvez sejamos nós que estamos com eles.

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sábado, 14 de agosto de 2010

COMO ARMAR UM PRESÉPIO

pegar uma paisagem qualquer

cortar todas as árvores e transformá-las em papel de imprensa

enviar para o matadouro mais próximo todos os animais

retirar da terra o petróleo ferro urânio que possa eventualmente conter e fabricar carros tanques aviões mísseis nucleares cujos morticínios hão de ser noticiados com destaque

despejar os detritos industriais nos rios e lagos

exterminar com herbicida ou napalm os últimos traços de vegetação

evacuar a população sobrevivente para as fábricas e cortiços da cidade

depois de reduzir assim a paisagem à medida do
homem
erguer um estábulo com restos de madeira cobrí-lo de chapas enferrujadas e esperar

esperar que algum boi doente algum burro fugido algum carneiro sem dono venha nele esconder-se

esperar que venha ajoelhar-se diante dele algum velho pastor que ainda acredite no milagre

esperar esperar

quem sabe um dia não nasce ali uma criança e a vida recomeça?



José Paulo Paes

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

SUTILIDADES

Há coisas essenciais feitas para não serem notadas. Elas existem para - de certa forma - serem ausentes.

É engraçada a forma com que a gente respira e sequer percebe o quão involuntária é essa nossa ingestão constante de ar. E mesmo quando a gente pensa nisso, não deixamos de permanecer nessa respirância sem fim.

Outra ilustração da nossa desatenção são nossos "piscar-de-olhos". Acostumamo-nos a esquecê-los. Tudo isso porque os achamos rápidos demais. Tão acelerados que sequer aparentam roubar nossas visões. Mas isso é mentira! Um fechar de olhos - dentre os muitos significados que possa ter - soa-me como um ato ignorante por excelência. Uma espécie de recusa egoísta quase tão letal quanto a decisão de parar de respirar.

Não, isso não é uma constatação "nossa". Isso foi posto em nossas cabeças desatentas desde que começamos a existir. Nós somos aqueles que foram previamente projetados para serem desatentos sempre.

Conscientizo-me para que eu não me torne mais um ignorante, mais um desatento. Sim, eu sou alguém que deseja a diferenciação. Principalmente pelas percepções e sensações que tenho.

"Eu": a pessoa que necessita notar toda vez que as luzes me são roubadas, nem que seja por um mísero piscar de olhos.

Eu: a pessoa que durante toda essa escrita percebeu, só agora, que respirou e piscou os olhos inúmeras vezes - e, no entanto, sequer notou a tempo.

sábado, 7 de agosto de 2010

"FILHOS, FILHOS: MELHOR NÃO TÊ-LOS

... mas se não os temos, como sabê-lo?"


Meu filho, AQUALQUERNORTEOUSUL, completa hoje um ano de vida. Foram - e são - tantas idéias compartilhadas, e tanto companheirismo, que a suposta "dependência hierárquica" entre pais e filhos, comigo é reversa.
Não é esse espaço que precisa de mim, sou eu quem não vive sem ele. Sou eu o dependente da história.

Tudo isso porque sei o quão incapaz eu sou de passar 24h sem pensar ou construir nada direcionado para cá.

Enfim,

"e o que mais importa
é levar essa chama
até quando eu não mais puder"



Com Carinho,
Murilo Franco

domingo, 1 de agosto de 2010

SERVIÇAL

Estou cansada. Mas não é cansaço de "ser", estou cansada é de servir. Mas, se para continuar viva, eu preciso servir, então confesso estar duplamente cansada - cansada de "ser" e cansada de "servir". Pensando assim, antes eu não "fosse" - para que nada precisasse ser assim e, sobretudo, para que eu não precisasse ser|estar assim.

Não suporto esse uniforme - tampouco a subserviência e falsa obediência que ele me força a exercer. Cansei de distribuir sorrisos mentirosos enquanto ponho mesa, espano vidro e carrego bandeja. Entre meu duplo cansaço, descubro mais um. Muito prazer, sou uma empregada-mulher triplamente cansada. Estou, também, exausta de ser servida. Na travessa, sou o prato principal - que de principal nada tem. Eu, que servindo a uma existência que nem desejei, sou obrigada a servir minhas necessidades e para isso servir aos outros. Dou-me a alheios superiores a mim. Superiores? Sim, porque eu não os vejo servir a ninguém - pelo menos não do jeito que eu sirvo. Vender-me pelo motivo óbvio e estúpido da sobrevivência - que eu continuo seguindo sem saber bem o porquê. Apenas porque sempre segui e sempre seguiram antes de mim. Sirvo, para continuar viva. Sirvo às tantas necessidades dos outros. E sirvo também a tantas (e no entanto tão poucas) necessidades minhas. Odeio as necessidades, que juntas - sendo deles ou minhas ou do mundo - obrigam-me a estar aqui: servindo de ser servente.