sexta-feira, 30 de julho de 2010

MEU DESAFIO

Eu não posso matar você, e isso de certa forma me mata. Eu sinto raiva de você mas bem sei que não posso cobrar que sejas diferente do que és só porque eu quero. Eu estaria matando a sua autenticidade se quisesse que fosses um alguém diferente do que, tão naturalmente, és. Porque você não pode ser outra pessoa. Você está ocupada demais sendo você mesma - de um modo tão irritante que eu acabo por sentir muita raiva. E acabo querendo mais do que nunca que você mude - que fique diferente. Para que eu não precise matá-la. Você me incomoda. Simplesmente porque, assim, você é inaceitável - inaceitável para mim. Porém, a sua persistência em me contrariar, além da raiva que me dá, me faz sentir algo diferente - um sentimento diferente do que eu estou acostumado a ter por ti. Quando você é tudo aquilo que eu não quero que você seja, eu termino por flagrar-me admirando-a. É inevitável. Porque você é o que eu não quero que seja. Você é o meu desafio. A empreitada que não findarei nunca, e que tanto me enlouquece. Pensar em tudo isso enquanto tento medir toda a raiva que sinto por você só me faz ver uma solução: mesmo que eu não consiga, eu preciso matar você - sobretudo porque nessa tentava frustrada estou a matar-me também.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

EU E MINHA MANIA DE AUTO-ENTREVISTAS

Um dos motivos pelos quais eu simplesmente comecei a escrever muita coisa "fictícia" e abandonei aquele modelo de texto-desabafo metralhado de críticas ao universo e recheado de "eu acho"; "eu odeio"; "eu quero"; "eu-eu-eu, mi-mi-mi" tão típicos do início dessa página foi a incômoda e constante mudança de pontos de vista - que me fez hostilizar boa parte de tudo o que eu já houvesse escrito.

Sem esquecer de mencionar a injustiça que uma produção sofre - até mesmo pelo próprio autor - depois que ela é vista do alto de um contexto completamente avesso. Esse tipo de coisa muito me dói. Sim, porque eu sou o tipo da pessoa que, hoje, deixa um recado escrito pra você, e após muito tempo decorrido, quando você me mostra aquele singelo conjunto de verbetes, sinto além da vontade de queimar o que escrevi, um desejo louco de suicidar-me em meio as chamas do inferno com um tiro em cada mão - para que não haja perigo de que eu escreva mais nada que me faça sentir vergonha na posteridade.

Já cheguei a comentar, das mais diversas formas, essa transitoriedade dentro da minha cabeça. Tenho plena consciência de que o momento vivenciado durante os nove meses da geração, e até o próprio parto de um texto, as sensações são literalmente ofuscantes. O brilho de todos aqueles motivos que nos fazem necessitar escrever e parir essa criança de nossas mentes, sim, nos deixa deixa mais cego do que qualquer coisa. Acontece que nesse momento tudo é muito coerente. Tudo são flores e amamos (ou não) nosso filhinho-texto mais do que tudo. Eis que vêm as rotinas umas atrás das outras e nosso pequenino bebê cresce e, conforme os hormônios o vão moldando, ele se torna (inevitavelmente) um adolescente-espinhento-rebelde&rabugento que ninguém ama, tampouco compreende. O que é bem verdade, uma vez que sequer os pais o fazem. E ai? Como proceder?!

R: Abrir mão da paternidade e torná-lo um órfão indigente e andarilho pelas estradas tortuosas da literatura marginal amadora, obviamente!

... totally sad, but all true, baby

Sou um covarde. E passar a criar histórias - junto com tudo o que existe dentro delas - foi minha porta de escape para, de certa forma, "tirar minha responsabilidade da reta"e ao mesmo tempo produzir alguma coisa sempre reinventada e interessante - sem que esta seja, desnecessariamente, tão óbvia e direta quanto às frustradas críticas por mim atiradas aos quatro cantos.

Envolvo-me tanto na criação de um enredo, uma personagem, um ambiente, umas interações-circunstâncias, um começo-desenrolar-fim que quando a história já está pronta, e o que me resta é publicá-la, sinto-me abraçado por uma sensação de recompensa. Uma espécie de companheirismo falso de mim para mim. Sem tanto holofote e confete, mas é o sentimento de "dever cumprido".

Sem falar que tudo me parece bem mais interessante uma vez que é prazeroso perceber minha essência no que crio - sem que jamais compreendam isso ou me vejam. Sinto o Murilo escondido e misturado às palavras de tal forma que nem eu sei fazer distinção alguma do que há - e do que já não há.

Não se trata apenas de um cuspe de sentimentos meus - não quero um diário. Existe todo um trabalho que eu enxergo como sendo maior. Não desprezo meus sentimentos, pelo contrário. Eu os valorizo e aproveito. Apenas não os enxergo como sendo completos e nem quero encharcar palavras apenas com minhas "psicoses & achismos" - isso é egoísmo. Portanto, encaro o plural do que estou sentindo como mais um ingrediente de uma construção. Mesmo que o que eu escreva fuja completamente do que seja eu, uso o momento vivenciado para impulsionar o que for, nem que sejam as vírgulas da história.

É muito prazeroso sentir-se dono de destinos, rumos e derivados. Tudo isso sem responsabilidade alguma. As coisas apenas tomarão as dimensões que você deseja e nada fugirá do seu controle. Quando se transcreve um texto "cru", ou algo da própria vida, tendo em vista a convivência e interferências de terceiros - ou até as auto-interferências - sempre constata-se o quão impotente se é em relação a determinados termos da própria vida. Apenas enxergam-se incertezas e angústias...

E quando todo esse oceano é transcrito, existe a sensação de que se está dando vazão, um certo esvaziamento. O que nem sempre é verdade. Por experiência própria, quanto mais eu escrevia sobre a merda toda que me rodeava, estava me "monstrualizando". Cada crítica implicante, por mais melancólica que pudesse ser, fazia de mim um intolerante. Depois de muito desabafar sobre o que tanto me incomodava, eu descobri que caminhava para aquilo que eu mesmo combatia - ou achava que combatia.

Vê como é decepcionante enxergar tanto sentimento exteriorizado - algo que outrora foi tão forte dentro de você - como sendo aquilo que cortava suas próprias asas, e que só você não notava? Você pode enxergar isso? Porque é disso que eu estou falando.

Quando alguém se auto-transcreve em determinado momento, é como se fosse tirada uma fotografia - um registro demasiadamente seu. Uma fotografia, simultaneamente, de dentro e de fora. Tudo isso fica guardado. De uma forma mais integral do que deveria ser. Ou seja, mais tarde, quando em outros ares encontrares com aquele passado, tudo aquilo voltará e fará com que tenhas vontade de rir. Gargalhar daquele teu reflexo antigo.

Há quem diga que há crescimento quando se enxerga os erros antigos ao passo que os têm apenas como antigos. Hoje está por se cometer erros novos - que só mais a frente serão notados. Declaro certa evolução quando comparo meu ontem ao meu hoje. E isso é bom.

Por outro lado, talvez eu esteja apenas tentando fugir de mim enquanto escrevo histórias e as propago como sendo inventadas. "Historinhas", meras ficções... Enxergando nessa perspectiva, não se vê crescimento algum, não é verdade?
Ou talvez tudo isso seja um engano: mais um engano redondo em que eu venha a me encontrar no foco. Talvez eu esteja apenas me escondendo, mas antes que eu me arrependa de ter começado a escrever histórias, e de ter redigido todas essas supostas justificativas para ter dado início a todo esse processo, prefiro - e sei que é melhor - deixar tudo como está.

Murilo Franco.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

O BEM DO MAR


O pescador tem dois amor
um bem na terra, um bem no mar
o bem da terra é aquela que
fica na beira da praia
quando a gente sai
O bem da terra é aquela que chora
mas faz que não chora
quando a gente sai
O bem do mar é o mar
é o mar
que carrega com a gente
pra gente pescar

D. Caymmi

domingo, 25 de julho de 2010

segunda-feira, 19 de julho de 2010

LARANJEIRAS

O telhado do muro lá de casa era repleto de cascas de laranja. Todas elas eram diariamente atiradas por mim e pelas mãos de minhas irmãs. Nós seguíamos várias simpatias, sobretudo as de adivinhação - arremessar cascas de laranja no telhado era uma delas.

A verdade é que todas nós éramos loucas por um casamento. E essa brincadeira amenizava nossas incertezas. Trabalhando com o tempo, era ela bem precisa.

Tínhamos três oportunidades de lançamento.

Caso a casca ficasse retida nas madeiras do telhado no primeiro arremesso - felizmente, o casamento além de certo, estava próximo. As que conseguiam esse feito - de tão realizadas com o resultado - saíam da brincadeira a fim de pensar e repensar nos bordados do enxoval, e nos nomes das futuras crias.

Perdida a chance do primeiro lançamento, qualquer uma se agarrava aos santos e torcia para que a casca finalmente se prendesse ao telhado nessa segunda oportunidade. Se assim se fizesse, o casamento era um tanto quanto incerto, porém, a perseverança e a fé talvez mudassem essa sentença. Apertávamos as cascas entre os dedos e que fosse feito o que Deus quisesse!

Desconsoladas, as que perdiam as duas primeiras chances, nem precisavam mais atirar casca em canto algum. Apenas encontravam motivação pra viver defendendo que os lançamentos anteriores não estavam valendo. E que o vento ou alguma invejosa atrapalhara todo o processo. Ninguém queria ficar descasada.

Muitas cascas foram atiradas e muitos anos vieram. Todas saímos de casa e nos espalhamos pelo mundo. Tornamo-nos adultas, mulheres de fato. Esposas, mães, tias e avós. Muitas casaram-se, outras até [re]casaram e há aquelas que perderam as duas primeiras oportunidades nos lançamentos da vida. Algumas também se foram.

Hoje, segurando minha filha pela mão, não pude deixar de passar pela antiga rua e parar de frente àquela antiga casa. Encostar uma mão no portão e sentir o perfume de laranja emanando daquele passado.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

ALÉM

Do alto dos meus cinco, ou seis anos de idade, quando em veraneios na chácara de meus avós, costumava sentar nos batentes do terraço prá diluir tempo observando tudo o que rodeava a propriedade. Sobretudo, observava a cerca.

Se bem me recordo, interligadas por arames, eram estacas brancas margeadas por estradinha de terra por fora e bastante capim do lado de dentro. De uma colina, a casinha azul esticava os olhos para um riacho logo abaixo. E eu na minha guarita - sempre vigilante.

Animais, crianças, parentes e visitas por toda parte.

Quando não entretido com guerras estelares; com banhos de rio entre as pedras; com botes infláveis vermelhos; com varas de pesca retráteis ou com biscoitos, doces-de-leite ou sucos alaranjados, voltava ao meu ofício de vigia. Durante minhas rondas, sempre olhava as vacas. Um dia disseram-me que quando um indivíduo do rebanho morria, os outros punham-se a organizar um cortejo. Torcia para que uma morresse e também não piscava os olhos porque queria muito vê-las rezando, chorando e velando a companheira. Trash, não?

Muitas outras vacas, durante todo o dia, passavam na estrada. Porém, esses animais desconhecidos me assustavam. Não por estarem fora, mas pelo fato de eu nunca saber se eles realmente estavam lá. Eles podiam estar dentro. Eles podiam estar fora. A cerca me confundia bastante.

Enquanto tentava calcular distâncias aproximadas o terror me sucumbia. Tinha sempre certeza de que elas estavam dentro. E se eles estivessem dentro, eu estava desprotegido. Eu tinha ciência de que tais animais eram vacas-furacões. Estando elas do lado de dentro, furiosas, viriam em minha direção. Era uma vez um eu.

Fechando bem a boca - impedindo que o coração pulasse por ela, corria para meu avô - perito nessa questão, e relatava a invasão. "Seguro como o Sol, que faz seu dia involuntariamente", meu avô examinava a situação e constatava o óbvio: os animais da estrada não tinham estraçalhado a cerca tampouco invadiram coisa alguma.

Eu disfarçava a vergonha em meio a falsos suspiros aliviados.

Costumava andar a cavalo. Minha vida, enquanto estava por lá, era quase um filme. O cavalo detestava as vacas - eu comungava com ele desse ódio. Porém, nossa diferença é que ele as perseguia e eu fugia delas. Um enorme cavalo marrom-avermelhado que tinha de dissimulado a mesma quantidade que dispunha de beleza. Enquanto estavamos na vista de outras pessoas o animal era um gentleman. Bastava que saíssemos do campo de visão alheio e o animal se transfigurava. Corria enlouquecidamente - comigo a tiracolo. Aos poucos perdi o medo e me acostumei com a psicose do equino. Durante um desses passeios, avistei um encapuzado. Que assim como eu, corria a cavalo - paralelamente à cerca. Antes que eu tivesse qualquer ação, minha montaria tomou as rédeas da situação e me transportou para longe daquela visagem. Passei a noite em claro. Imerso na escuridão da capa do estranho.

Brincando comigo mais uma vez, a cerca esteve lá durante todo o tempo. Mas não foi capaz de me proteger da imagem do estranho - e do susto que ele me deu. Se ela o fizesse, não seria cerca. Seria muro. Antes fosse muro. Porém, muros mais no cercam do que uma cerca. E naquele momento, eu queria ver além. Coisa que - "nos protegendo do que está fora" - só cerca faz.

*

Toda essa "rememoração" me veio de repente. Em sonho. Sonhei com meu avô e recordei desse passado. Junto com essas lembranças, tracei um paralelo entre minha vida e o amontoado de coisas que me formam. Meras constituições desprovidas de sentido ou finalidade alguma. Desconexões.

Em relação a você, sinto-me e disponho-me da mesma forma que me senti e dispus há anos. Sentado de longe, observando. Não sou capaz de distinguir se estás dentro ou fora de mim - longe ou perto, acessível ou não. Inerente a isso, não tenho coragem de correr do terraço em direção à cerca. Pra saber se ela existe - e se ela nos separa.

Também não tenho quem me tire essa dúvida. Na verdade, não tenho quem me tire dúvida alguma. Um alguém que olhe por mim, analise por mim. Estou só. Não tenho para quem correr. Nem que fosse para deixar a pergunta nas entrelinhas... Não tenho. E quando acho alguém digno disso, essa pessoa toma rumos diferentes e acabamos nos distanciando. Prefiro calar a me arrepender. O ideal seria que você me tirasse essa dúvida. Mas eu sinto que você está sempre tão além. Inalcançável. Infelizmente - ou felizmente - meus sentidos são sempre tão incertos. Indignos de confiança.

Durante a reflexão, não pude deixar de constar outras diversidades:

Os encapuzados-estranhos estão mais presentes na minha vida do que imaginei. Sempre tão indecifráveis. Há dias em que gostaria de vestir - também - esse manto. Me tornar uma interrogação. Mas só apanho retalhos. Meu reflexo no espelho é o de um nú com pontos disfarçados. Ao mesmo tempo em que procuro "sê-los", mantenho a devida distância. Inevitável, quando não sou eu quem fujo, me fazem correr léguas desse abismo.

Enquanto outras pessoas preferem viver, eu prefiro observar. Assim como sempre fiz. Nada disso é novidade, mas eu sinto só hoje essa descoberta. Prefiro ficar nos bastidores e esperar que alguém saia de sua rotina e mude minha vida. Um telefonema, talvez?

São nesses momentos em que me enxergo minúsculo. Invisível.

Por incrível que pareça, às vezes, também me encontro maior do que os limites suportam. Sinto-me como uma espécie de gigante que dormiu pigmeu e acordou imenso - sem noção alguma de tempo/espaço. E é por isso que sinto-me extravasar e derramar em vários aspectos.
Ao mesmo tempo em que, fora das cercas, quero ser parte de tudo o que acontece, sinto que tudo se perde. Sinto que me perco. Os ponteiros "volteiam" e há terras demais por conquistar, coisas demais a se fazer... Esse é um ponto a se trabalhar no futuro, uma vez que a ponte, hoje, é passado-presente. Mas eu ainda sei duas coisas: que toda essa reflexão é demasiadamente egoísta e que eu preciso de mais tempo - prá compensar o que foi perdido, quem sabe?

Um dos motivos pelos quais eu não governo minha vida é porque quando eu o faço, sempre me excedo. Agora, por exemplo, sinto que estou me excedendo. Cruzei as fronteiras de tal forma que sou incapaz de por fim a esses pensamentos. Espero que me perdoem mas, cá esta mais um elefante branco. E em seu último alvo pêlo do rabo, fixo uma canção - mais uma vez.

Eu - hoje - ando atrás de algo impressionante.
Que me mate de susto,
um impulso, um rompante.
Que é pra me desviar desse mar de calmante.
Eu sempre andei atrás de alguém pra andar na frente.
Ah, eu quis me apaixonar assim - perdidamente.
Um engano redondo.
O ciúme intuiu meio tarde demais.
Ah, o meu orgulho já perdeu teu endereço.
Mas o meu coração, não.
Eu não.
Eu não esqueço.

Eu - hoje - ando atrás de algo impressionante.
Que me mate de susto...
Um discurso, um romance...
Que é pra me desviar desse mar de calmante.
Rodei Belém inteira e não te achei.
Você mora com alguém?
A. Calcanhotto - Enguiço

segunda-feira, 12 de julho de 2010

VAIDADE

Eu sou um personagem.
Na verdade, sou um personagem ávido por um autor - faminto por alguém que me escreva e me torne, verdadeiramente, o que sou: um personagem.
Mas um personagem que realmente exista.

Eu não sou se não minha própria voz que se propaga mas não ecoa. Digo isso porque ela não retorna a mim, tampouco se aprisiona em outro lugar. É um nascer e um morrer diário. Eu - que sou o que pronuncio, sigo nos prejuízos triviais e corriqueiros de perder minha própria identidade. Encontro-me exausto de tantas e constantes {re}invenções. Tantos nascimentos sem nenhuma morte definitiva. Tantas mortes rápidas sem nenhuma ressurreição, renascimento ou retorno dos meus melhores dias - da época em que era criativo e me criava de forma cada vez mais magnífica. Tudo isso se perdeu, e se perde. {In}Felizmente.

Eu busco um autor justamente pela "inexplicabilidade" de minha existência. Eu preciso de uma fixação. Um registro. Sim, porque sou apenas o que eu mesmo penso e digo que seja eu. É como se eu me tivesse inventado. E isso não pode existir porque não é real, não é honesto e nem fiel.

Eu poderia ser o autor de mim. Tantas vezes penso nisso, mas chego sempre na mesma resolução. Se eu me escrevesse, seria por demais parcial - permeável por minhas próprias influências e vergonhas. Preciso de alguém com traços no mínimo sádicos. Corajoso, que siga em frente, com prazer, e que não se acanhe ao menor detalhe sórdido. E que faça o serviço bem feito.

Há dias em que penso não ser ninguém. A verdade é que não se trata disso. Não posso simplesmente forjar uma realidade - esconder a verdade. Nesses dias eu tenho a consciênciade que não sou ninguém. Eu não existo. E isso é um fato.

Por outro lado, não sou capaz de me decidir. Por mas que eu saiba da minha inexistência, minha voz não se cala. Eu me declaro inexistente, mas o que não há assim o é porque, além de outras lacunas vagas, também é mudo. Eu posso negar tudo o que digo, mas não posso negar minha voz. Diante disso, não sei o que fazer. Não sei como proceder. Estou tão solto que me enxergo completamente preso à liberdade. É uma liberdade imensa. Grandiosa. E é essa liberdade tamanha - inalcançavel a qualquer coisa existente - que me faz crer que não existo.

Eu preciso de foco. Atenção é o que me falta. Na verdade, é o que também me falta. Eu desejo o que desejo, mas meu desejo não consome todas as minhas forças. Isso acontece porque eu desejo tudo. Sinto-me incapaz de querer uma coisa e não querer outra, ou querer uma coisa só. A minha preferência é pelo que há - e pelo que não há - ao meu alcance. Já que eu não tenho nada, que me seja possível querer o que me falta: tudo.

Preciso pensar em uma coisa só. Ganhar minha alforria da liberdade. Quero uma prisão, quero existir.

Sobretudo eu quero uma coisa: que você me escreva.