sexta-feira, 16 de julho de 2010

ALÉM

Do alto dos meus cinco, ou seis anos de idade, quando em veraneios na chácara de meus avós, costumava sentar nos batentes do terraço prá diluir tempo observando tudo o que rodeava a propriedade. Sobretudo, observava a cerca.

Se bem me recordo, interligadas por arames, eram estacas brancas margeadas por estradinha de terra por fora e bastante capim do lado de dentro. De uma colina, a casinha azul esticava os olhos para um riacho logo abaixo. E eu na minha guarita - sempre vigilante.

Animais, crianças, parentes e visitas por toda parte.

Quando não entretido com guerras estelares; com banhos de rio entre as pedras; com botes infláveis vermelhos; com varas de pesca retráteis ou com biscoitos, doces-de-leite ou sucos alaranjados, voltava ao meu ofício de vigia. Durante minhas rondas, sempre olhava as vacas. Um dia disseram-me que quando um indivíduo do rebanho morria, os outros punham-se a organizar um cortejo. Torcia para que uma morresse e também não piscava os olhos porque queria muito vê-las rezando, chorando e velando a companheira. Trash, não?

Muitas outras vacas, durante todo o dia, passavam na estrada. Porém, esses animais desconhecidos me assustavam. Não por estarem fora, mas pelo fato de eu nunca saber se eles realmente estavam lá. Eles podiam estar dentro. Eles podiam estar fora. A cerca me confundia bastante.

Enquanto tentava calcular distâncias aproximadas o terror me sucumbia. Tinha sempre certeza de que elas estavam dentro. E se eles estivessem dentro, eu estava desprotegido. Eu tinha ciência de que tais animais eram vacas-furacões. Estando elas do lado de dentro, furiosas, viriam em minha direção. Era uma vez um eu.

Fechando bem a boca - impedindo que o coração pulasse por ela, corria para meu avô - perito nessa questão, e relatava a invasão. "Seguro como o Sol, que faz seu dia involuntariamente", meu avô examinava a situação e constatava o óbvio: os animais da estrada não tinham estraçalhado a cerca tampouco invadiram coisa alguma.

Eu disfarçava a vergonha em meio a falsos suspiros aliviados.

Costumava andar a cavalo. Minha vida, enquanto estava por lá, era quase um filme. O cavalo detestava as vacas - eu comungava com ele desse ódio. Porém, nossa diferença é que ele as perseguia e eu fugia delas. Um enorme cavalo marrom-avermelhado que tinha de dissimulado a mesma quantidade que dispunha de beleza. Enquanto estavamos na vista de outras pessoas o animal era um gentleman. Bastava que saíssemos do campo de visão alheio e o animal se transfigurava. Corria enlouquecidamente - comigo a tiracolo. Aos poucos perdi o medo e me acostumei com a psicose do equino. Durante um desses passeios, avistei um encapuzado. Que assim como eu, corria a cavalo - paralelamente à cerca. Antes que eu tivesse qualquer ação, minha montaria tomou as rédeas da situação e me transportou para longe daquela visagem. Passei a noite em claro. Imerso na escuridão da capa do estranho.

Brincando comigo mais uma vez, a cerca esteve lá durante todo o tempo. Mas não foi capaz de me proteger da imagem do estranho - e do susto que ele me deu. Se ela o fizesse, não seria cerca. Seria muro. Antes fosse muro. Porém, muros mais no cercam do que uma cerca. E naquele momento, eu queria ver além. Coisa que - "nos protegendo do que está fora" - só cerca faz.

*

Toda essa "rememoração" me veio de repente. Em sonho. Sonhei com meu avô e recordei desse passado. Junto com essas lembranças, tracei um paralelo entre minha vida e o amontoado de coisas que me formam. Meras constituições desprovidas de sentido ou finalidade alguma. Desconexões.

Em relação a você, sinto-me e disponho-me da mesma forma que me senti e dispus há anos. Sentado de longe, observando. Não sou capaz de distinguir se estás dentro ou fora de mim - longe ou perto, acessível ou não. Inerente a isso, não tenho coragem de correr do terraço em direção à cerca. Pra saber se ela existe - e se ela nos separa.

Também não tenho quem me tire essa dúvida. Na verdade, não tenho quem me tire dúvida alguma. Um alguém que olhe por mim, analise por mim. Estou só. Não tenho para quem correr. Nem que fosse para deixar a pergunta nas entrelinhas... Não tenho. E quando acho alguém digno disso, essa pessoa toma rumos diferentes e acabamos nos distanciando. Prefiro calar a me arrepender. O ideal seria que você me tirasse essa dúvida. Mas eu sinto que você está sempre tão além. Inalcançável. Infelizmente - ou felizmente - meus sentidos são sempre tão incertos. Indignos de confiança.

Durante a reflexão, não pude deixar de constar outras diversidades:

Os encapuzados-estranhos estão mais presentes na minha vida do que imaginei. Sempre tão indecifráveis. Há dias em que gostaria de vestir - também - esse manto. Me tornar uma interrogação. Mas só apanho retalhos. Meu reflexo no espelho é o de um nú com pontos disfarçados. Ao mesmo tempo em que procuro "sê-los", mantenho a devida distância. Inevitável, quando não sou eu quem fujo, me fazem correr léguas desse abismo.

Enquanto outras pessoas preferem viver, eu prefiro observar. Assim como sempre fiz. Nada disso é novidade, mas eu sinto só hoje essa descoberta. Prefiro ficar nos bastidores e esperar que alguém saia de sua rotina e mude minha vida. Um telefonema, talvez?

São nesses momentos em que me enxergo minúsculo. Invisível.

Por incrível que pareça, às vezes, também me encontro maior do que os limites suportam. Sinto-me como uma espécie de gigante que dormiu pigmeu e acordou imenso - sem noção alguma de tempo/espaço. E é por isso que sinto-me extravasar e derramar em vários aspectos.
Ao mesmo tempo em que, fora das cercas, quero ser parte de tudo o que acontece, sinto que tudo se perde. Sinto que me perco. Os ponteiros "volteiam" e há terras demais por conquistar, coisas demais a se fazer... Esse é um ponto a se trabalhar no futuro, uma vez que a ponte, hoje, é passado-presente. Mas eu ainda sei duas coisas: que toda essa reflexão é demasiadamente egoísta e que eu preciso de mais tempo - prá compensar o que foi perdido, quem sabe?

Um dos motivos pelos quais eu não governo minha vida é porque quando eu o faço, sempre me excedo. Agora, por exemplo, sinto que estou me excedendo. Cruzei as fronteiras de tal forma que sou incapaz de por fim a esses pensamentos. Espero que me perdoem mas, cá esta mais um elefante branco. E em seu último alvo pêlo do rabo, fixo uma canção - mais uma vez.

Eu - hoje - ando atrás de algo impressionante.
Que me mate de susto,
um impulso, um rompante.
Que é pra me desviar desse mar de calmante.
Eu sempre andei atrás de alguém pra andar na frente.
Ah, eu quis me apaixonar assim - perdidamente.
Um engano redondo.
O ciúme intuiu meio tarde demais.
Ah, o meu orgulho já perdeu teu endereço.
Mas o meu coração, não.
Eu não.
Eu não esqueço.

Eu - hoje - ando atrás de algo impressionante.
Que me mate de susto...
Um discurso, um romance...
Que é pra me desviar desse mar de calmante.
Rodei Belém inteira e não te achei.
Você mora com alguém?
A. Calcanhotto - Enguiço

Um comentário:

Lu Oliveira disse...

Se exceder é sem dúvida um dos grandes baratos da vida. Lilo, suas idéias excedem às que coisas que estou acostumada...
Bjos da nova discípula Lu! =)