quinta-feira, 29 de outubro de 2009

TEXTÍCULO

Cambaleante, saía de mais uma exaustiva sexta-feira. A cada dia aquele verdadeiro inferno era capaz de aumentar ao máximo suas labaredas para lhe provocar a ira. Definitivamente, aquela repartição já não era mais a mesma. Nunca fora, e não seria agora, que voltaria a ser o que já não foi. Os cigarros tragados eram balinhas adocicadas para sua alma vazia. Verdadeiros diluidores do tempo. Resistiria firme e forte, pois não seria aquela grande porcaria burocrática que lhe roubaria o tutano. Não via a hora de poder sair daquele verdadeiro hospício. Finalmente, pondo em prática todo o seu brilhante plano - arquitetado por anos a fio: a cada passo em que saísse - de uma vez por todas – pelo saguão do edifício riscaria um fósforo, queimando toda aquela papelada até que aquele covil de putas estagiárias e cornos infiéis explodisse em um magnífico show pirotécnico - o qual lhe faria verter lágrimas de emoção.
Enquanto os anos não se esgotavam, contentava-se a cada sexta-feira - ao fim do expediente, em bater o ponto religiosamente ao boteco da esquina. Afinal, naquela situação de vida, a felicidade só brilhava no fim do copo.
Desde pequeno, aprendera a se contentar com a companhia da solidão, órfão de pai e mãe, nunca fora digno das preferências femininas, na adolescência se excluía de qualquer multidão e maquinava tranqüilo durante a noite seus atos do dia seguinte. Subira na vida, sempre só. Nunca tivera despesas adicionais ao seu plano anual. Nada lhe fugia dos parâmetros mesquinhos e egoístas de sua existência. Frio e calculista. O que lhe faltava de emoção, lhe sobrava em ambição. Construíra uma vida sólida, impecável e completamente sem sal. Avarento por falta de opção, não era digno de qualquer que fosse a gentileza. Ranzinza e amargo nutria desejos de vingança a qualquer um que lhe dirigisse um olhar atravessado. Durante praticamente toda a vida definhara em um “hotel” moribundo. Um velho, de não poucos, mas pouquíssimos, ou praticamente: nenhum verbete.
Naquela sexta-feira sentira uma vontade descomunal de encher a cara e esquecer as pragas dos estagiários. Durante os últimos 27 anos de repartição, era obrigado a conviver com milhares de estagiários, um a cada mês, e todos com a mesma ambição de tomar lhe o emprego. Nunca os poupara. Relatórios imensos e infundados eram, em verdadeiro mar de ironia e sarcasmo, encomendados a cada três dias pelo ancião pré-cambriano da repartição. Era sem dúvida o mais velho, mas nunca saíra de seu posto. Nunca fora promovido. Sua vida nunca se tornou interessante o bastante para ser especulada nem tampouco alfinetada em fofocas secretariais. Não havia graça em se falar nele. Qualquer piada perdia a graça quando se endereçava ao velho.
Adorava ouvir conversas alheias. Sua língua ardia de vontade de contar o que descobrira durante anos de “pesquisas”. Um ouvinte era o que não dispunha.
O fim de semana passou como um susto. Quando se percebeu, já estava dentro da camisa branca, enforcado pela gravata verde-bosta - manchada de café – outra vez. Era capaz de fechar os olhos e seguir do hotel até o “suplício-seu-de-cada-dia” contando todos os 598 passos. O dia já se iniciava em maus sinais. Chegou ao pé da escada do trabalho e a mesma estava sendo limpa. MIL INFERNOS! Teria de ir pelo elevador. Odiava o elevador. Preferia mil vezes ir solitariamente – e “alegre” – pela escada, escura e podre à umidade e mofo, do que se sujeitar à humilhação de ter de aturar mil pessoas por milímetro quadrado em um “aprendiz de andaime” da 2ªG.M. esturricado de desinfetante. Não bastava a fobia do ambiente, sempre estava abarrotado de estúpidos contando o glorioso fim-de-semana. Aquele empaçocamento ridículo o irritava ao extremo. Sem problemas, respira-se 20 vezes e encara-se o martírio. Não seria uma porcaria daquelas que aniquilaria seu dia pela raiz.
Não foi diferente. Cada um dos 7 transportados que usasse o mais desgraçado perfume. Além do espaço, além das pessoas, além dos desinfetantes, além das conversas - intermináveis até o 6º andar -, os perfumes já eram DEMAIS! O sangue subiu-lhe. Como entrara primeiro - pela falta de costume, teve de ficar ao fundo. DOIS MIL INFERNOS! Passou pelo 6º andar 20 vezes e nunca o deixavam sair. Não daria o gosto de pedir licença. JAMAIS. Na vigésima primeira vez, derrubou quem viu pela frente. Filho-de-puta foi o mais doce adjetivo que ouviu. Quem se importa? Que esse raio despenque direto pro inferno! Finalmente sentou na cadeira, abriu a janela... Estava, enfim, seguro!
Carimbou, assinou, rubricou, leu, (re)leu, mandou, desmandou, respirou, saiu, engoliu café, retornou, sentou... Carimbou, assinou, rubricou, leu, (re)leu, mandou, desmandou, respirou, “bateu o ponto”, enfim: ESCAPOU.
Milagrosamente – graças às horas extras, encontrou o elevador vazio. A escada, dessa vez, não o agradou muito. Principalmente por ter visto o Vieira (casado há 25 anos) entrar com a mais nova faxineira-freelancer pela porta, que, GRAÇAS AO BOM DEUS, “cortava fogos”... Ao 3º andar de percurso, entraram duas moças, uma muito chorosa, por sinal... Dizia-se, por entre soluços, muito triste, muito só... Já inclusive marcara consulta com analista... Bem, não estava... FINALMENTE algo divertido! Eis que o 3º ocupante do elevador – que não as moças, não poupou gargalhadas... Debochou claramente das duas... Riu-se a valer! As duas, muito ofendidas, não agüentaram chegar o térreo, desceram logo ao 2º andar, dessa vez, ao invés de uma chorosa, eram duas... Frágeis imbecís!
... Atravessou, triunfante, pelo saguão! Valeu o dia!


**********


Um ronco estrondoso roubou-lhe o ar! Assustou-se, engasgou e tossiu. Estava ainda com a roupa do trabalho. Certamente caíra na cama e dormira pesado. Que horas seriam? Ainda 2:15... Tomou 20 minutos de banho escaldante, “pensou na vida”, comeu alguma coisa e perdeu o sono. Bolava de um lado ao outro do colchão... Sentia cada mola, ouvia cada passo na rua... Santa insônia... Olhou pro teto e lembrou-se do incidente, do elevador. Ensaiou um riso forçado. Perdera a graça... Pela falta do que pensar, as moças, não lhe saíam da cabeça... Lembrou do diálogo, da tristeza, do terapeuta... Terapeuta?... ANALISTA! ...analista? Analista.
Quando deu por si, procurava no catálogo de telefones, qualquer um que exercesse a profissão. Se lhe faltava companhia: pagava-se qualquer um que lhe ouvisse e aquela pontinha de insatisfação sumiria. Já passara da idade de gastar dinheiro com puta, mesmo... A última lhe roubara até as roupas. Morra no inferno, desgraçada! Clínica de Saúde Mental Santa Zildene..., Não. Saúde Mental o escambau! Não era doido!... Agradou-lhe o nome de um tal de Marcos. “Dr. Marcos”... Doutor a pitomba! Nem médico uma desgraça dessas, é! Ainda leva nome de “Doutor”... É de lascar, mesmo. Pronto. Vai ser esse mesmo. Anotou o número num papel de pão. Pregou no frigobar. Amanhã – logo mais – agendaria a “consulta” com o pseudo-doutor fulano... O sono não chegava. Uma ansiedade besta tomou conta da mente. Abriu a janela, virou o travesseiro, virou o colchão... Não adianta. Ficou a olhar as sombras dos carros que apareciam no teto do quarto.
Levantou-se antes do despertador gritar. Praguejou o dia em que o comprou. Não servia de nada, mesmo. Sempre se levantava antes – nem que fosse um minuto – dele o despertar. Vai ver que pessoas inúteis atraem toda a sorte de inutilidades... Terminou por sair de casa em direção ao trabalho, completamente esquecido do analista.
Bons sinais: escada desocupada. Galgou cada degrau preguiçosamente e ao chegar ao 6º andar notou algo diferente. Muitos olhares em sua direção. Espantosamente, a cada corredor que se arrastava levava consigo, se não todos, boa parte dos olhares de quem se encontrava no caminho. Estranhou bastante. Nunca foram disso... Certamente aquelas mulas o confundiam com um novato. Logo ele...! Jogou as hipóteses pro inferno e continuou a caminhada. Enfiou a mão no bolso de fora da pasta, no compartimento número 3. Apanhou a chave da sala. Qual foi o espanto ao ver que a mesma encontrava-se aberta com algumas pessoas dentro. Desviou o caminho. Correu à copa, bebeu alguns goles d’água, observava a movimentação de sua sala pelas persianas. O entra-e-sai parou e fecharam a porta. Pediu paciência aos céus, porque se Deus lhe desse forças, seria capaz de matar todos aqueles ratos insolentes por terem entrado em sua sala. Encaminhou-se furioso à sala. Mal teve tempo de virar a maçaneta e um “elemento” bateu em seu ombro. Apertou a maçaneta com força, arranhou a porta de leve... Todos os olhares de desprezo foram ínfimos comparados ao que o velho fez para a porta, antes de virar-se. Provavelmente, um estúpido estagiário novato desesperado que, no mínimo, estaria jorrando merda por todos os buracos sem saber onde era o banheiro. Com os olhos fechados, indicou a segunda porta à esquerda. Antes de os abrir soltou um irônico “Bon Apetit, rola-bosta!”.
Rubro não poderia mais ficar quando abriu os olhos e viu a cara de desentendido de seu supervisor. Antes que se desculpasse, ou pronunciasse qualquer coisa, o supervisor o fez entrar na sala. Mandou que sentasse e desenrolou toda uma história sem muito fundamento acerca da história da repartição. Quão magnífica era a reputação da instituição até aquele presente momento. Não seria ele, um dos funcionários mais antigos, que sujaria esse nome. Desentendido, e fora do ar, ensaiou levantar-se da cadeira e perguntar o que houve. Antes que o fizesse o supervisor bruscamente colocou as duas mãos sobre a mesa e aos berros perguntou o porquê daquilo tudo. Seria muito mais fácil entrar na maracutaia da aposentadoria por invalidez... Já que era louco: que tivesse entrado no inferno antes de cuspir no prato que comeu! Mas não! Tinha de fazer toda aquela merda. Que sofresse as conseqüências, velho Maldito! Saiu surrando o chão com os pés. Bateu a porta. Trincou o vidro. Ainda sentado na cadeira, o velho com cara de besta estava, com cara de besta ficou. Estupidificado com tudo o que se passou.
Cerca de 15 minutos após o ocorrido, entrou um desconhecido. Friamente se apresentou como sendo delegado do distrito. Disse ter ido à “casa”, mas não o tinha encontrado. Ligaram para a delegacia avisando que o “criminoso havia comparecido, novamente, à cena do crime”. Colheu algumas informações pessoais e o autuou. O assassinato estava provado. A câmera do elevador havia filmado tudo. Estava preso. Acionasse imediatamente alguém. Talvez um advogado.
Na confusão dos pensamentos e questionamentos apenas só lhe vinha na cabeça o número do analista. Agarrou a lista telefônica. Já sabia onde procurar. Apertou os números do telefone e falou palavras cortadas com a atendente. Felizmente, achou horário vago para este mesmo dia. Uma desistência no período da tarde... Consternado, faltou-lhe a voz. Levou apavoradamente a mão ao pescoço. Gritou sem sair qualquer som.
Acordou em leito de hospital. Olhou para os lados. Sentiu o frio de algemas em um dos braços. Que inferno todo era aquele? A porta se abriu e uma mulher alta cruzou a sala. O reflexo de seus óculos ofuscou sua visão. Incomodou-se com mil fios que o cercavam e aparelhos que o rodeavam. Fixou-se na mulher que se sentou na poltrona ao lado do leito. Olhava-o friamente. Da poltrona, apresentou-se. Na impossibilidade de seu marido, Dr. Marcos pegar o caso, ela, a esposa, também terapeuta, o pegou. Perguntou como o “paciente” se sentia. Fez ares de interesse. Mostrou-se ciente do caso, prometeu querer apenas o melhor. Tomara a liberdade de contatar um conhecido, advogado, que se encarregaria do processo jurídico...
Desabou, então, a lembrança de tudo o que ocorrera nas últimas horas. Domando o pânico e por entre lágrimas, pediu que a terapeuta se aproximasse. Falando algumas palavras desconexas e em um tom de voz muito baixo, obrigou-a a se aproximar ainda mais. Apenas fez-se o tempo de a analista curvar-se para ouvi-lo melhor, o velho, com a mão livre, juntou todos os dutos que nele estavam presos e os enrolou em torno do pescoço da infeliz “pseudo-doutora”. Sem ação, quando veio a debater-se era questão de segundos – e um pouco mais de força – para que estivesse debruçada sobre o velho. Com os olhos duros de pânico. Morta.
Entre risos convulsivos, restou-lhe arrancar o resto das agulhas que ainda não tinham sido desprendidas de sua pele. Ver sangue jorrando o rejuvenesceu. Mal continha as gargalhadas. Os mesmos fios que mataram sua “terapeuta” o levariam direto para o céu. “Afinal: matam-se duas, mata-se uma, simplesmente: mata-se!”. Desenrolou os fios do pescoço da outra, empurrou o cadáver, fez várias voltas em torno de seu próprio pescoço, amarrou na haste do pedestal de soro. Chutou-o. Valeu o dia.

2 comentários:

FRANCO, Murilo disse...

Stephen King que se cuide... HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA.

Vanessa Isis disse...

Stephen King? PERDEU, PLAYBOY.
Depois que Murilinho Baixo Astral entrou na área não tem pra ninguém. Tá tocando o terror, hein, muleque? ;)

Adorei o texto, no conditions.
Ri muito, muito mesmo, reconheci pessoas dentro dele (mesmo que você diga que é só uma historinha).
E é como eu disse, eu tenho certeza que meu futuro vai ser semelhante ao desse pobre coitado, tendo em vista que eu não matarei menos de dez, aah, não. Não mes-mo.

* Planos de seqüestro continuam sendo válidos.

Mas assim, inveja pouca é bobagem, você sabe. E minha inveja é positiva, coisa de fã a ídolo mesmo,entende? Adorei o texto.

Além do mais, acho que essa é a hora de roubar uma frase que você usou comigo uma vez: "é bom saber que existem mentes mais revoltosas que a minha". E digo mais: melhor ainda é saber que estas mentes estão por perto, há.

E só uma nota pra encerrar: Eu não te perdoei por ter me deixado falando sozinha no msn.

Beijos, coisa fofa de tia!