
sexta-feira, 22 de abril de 2011
VERÃO
"Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração
deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o destino de tudo
que está para se acabar
A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida
Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer,
E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.
O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida
Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.
E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda agonia
resiste mordendo o chão.
Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
É essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.
Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração - resiste."
Ferreira Gullar
domingo, 17 de abril de 2011
GAME OVER
COLHERINHAS
Contudo, as coisas mudam. Já no final do primeiro ano de casamento começaram as brigas. Descobriram que não eram tão parecidos assim, que seus gostos diferiam muito. O resultado disso é que, na cama, já não adotavam a posição de colherinha. Ficavam os dois de costas um para o outro. Ele roncava, e ela, impaciente, o cutucava com os dedos, que pareciam os afiados dentes de um garfo. Ele respondia com frases agressivas, cortantes como a lâmina de uma faca afiada. Acabaram se separando. Ela ficou com o apartamento, onde agora dormia sozinha numa cama de casal que subitamente se tornara imensa. Ele se mudou para outra cidade e não dava notícias.
Ela aguentava firme, mas um dia desabou. O dia em que, abrindo a gaveta dos talheres, viu as colherinhas perfeitamente encaixadas umas nas outras. A imagem da harmonia, a imagem do amor.
Pensou em mudar de país. Pronta para viajar, bateram à sua porta. Era uma entrega para ela.